quarta-feira, 12 de agosto de 2009

O Cozinheiro de Bordo - Emir Nogueira


Outro dia deparei-me com uma frase de Sören Kierkegaard, dita em 1845 e que me pareceu triste profecia à banalização do humano que estamos vivendo hoje:
“[A sociedade de hoje] é um navio que está nas mãos do cozinheiro de bordo; e as palavras transmitidas pelo auto-falante do comandante não dizem mais respeito à rota (que não mais interessa a ninguém), mas ao que se comerá amanhã”.
Acerca desta afirmativa, comenta a Academia Pontifícia: “Já em 1845, Sören Kierkegaard (1813 – 1855), como uma antena extraordinariamente sensível, captou um comportamento difuso de banalização da vida com todas as conseqüências que isso comporta para a orientação da liberdade humana. (...) Kierkegaard percebeu que se estava difundindo a idolatria do banal”.
Passaram-se 162 anos, e eis que nós, homens do século XXI, continuamos alienadamente prisioneiros, na nossa nau, nem um pouco interessados em nosso destino, a fartar-nos avidamente do cardápio do aqui e agora.
O centro da frase de Kierkegaard, porém, não é o navio, mas a banalização do homem que advém de uma contínua inversão de valores. Durante milênios a civilização foi guiada pelos valores cristãos. A fé, o temor e respeito a Deus, os princípios do Evangelho, da caridade, da bondade, do respeito pelo outro, da vida em família e, sobretudo, o sentido de eternidade, o destino dos passageiros do navio.
Tão perplexo quanto Kierkegaard, Fedor M. Dostoievski (1821-1881), diria, diante do mundo enlouquecido e medíocre que ambos previram: “Se Deus não existe, então tudo é possível!” O homem, cheio de si, auto-suficiente a ponto de se julgar senhor da vida e da morte, decretou, na vida prática, a inutilidade de Deus. Da morte de Deus, decretada por Nietzsche pouco depois de Kierkegaard e Dostoievski, passamos, no século XXI, ao ateísmo prático que nos permite até “saber” que Deus existe, mas ignorar este fato como se não tivesse nenhuma importância para nossa vida.
O que importa, hoje, é tirar Deus do comando do navio e preservar para si e para os outros o ar moderno e emancipado que garante prestígio nas mais diversas áreas da sociedade. Em seu lugar, é preciso colocar o cozinheiro de bordo, ou seja, aquele que garante a banalidade do dia a dia, o prazer imediato acima de tudo e de todos, a animalidade do homem.
Se o homem vive para comer, fazer sexo, ter satisfeitos seus devaneios, pensar principalmente em si, buscar a riqueza e o poder, realmente torna-se cada vez mais próximo do animal, prisioneiro do prazer do aqui e agora, pronto para achar que sua vida acabará no instante de sua morte, despido de ideais que ultrapassem a última conquista científica, um aumento da renda própria ou o artefato técnico de última geração . Desprovido, em uma palavra, de algo, de Alguém que o ultrapasse.
Talvez Dostoievski exclamasse, hoje: “Se o homem torna-se um fim em si mesmo, se não crê em nada ou ninguém que esteja acima dele, então tudo é possível”. Kierkegaard talvez completasse: “Se a rota não importa a ninguém, se o comandante está imobilizado, todos naufragarão iludidos, de barriga cheia”. Não foi o que aconteceu com o auto-suficiente e imbatível Titanic?
O homem banalizou-se. Vive para si. Para comer, dormir, ganhar dinheiro e fama. O relativismo moral corroeu sua consciência, o individualismo egoísta o cegou. O egoísmo o paralisou. O materialismo o degradou. O ateísmo prático invadiu a vida dos próprios cristãos e os descristianizou.
A banalidade invade a mídia, a música popular, a literatura dos milhões de exemplares instantâneos. Expressa-se nas drogas e no álcool, nas famílias desfeitas, nos milhões de abortos diários, na droga cibernética que tem consumido tantas mentes brilhantes, no trabalho como sentido de vida.
Estamos em pleno culto do banal. Não há mais ideais. Não há mais o amor disposto a renunciar pelo outro – único amor autêntico. Não há mais heroísmo. A beleza banalizou-se na mesmice, a harmonia foi substituída pela vulgaridade, a paz dos relacionamentos baseados no perdão e na renúncia pelo outro, resume-se no trivial comprimido e no corriqueiro monitor alienante.
Se Deus não existe, tudo é possível. Se é o cozinheiro quem está no comando, estão banalizados os comandados. É preciso fazer um motim. Sim, um levante! É preciso retomar o navio, redirecionar seu rumo, reafirmar que o homem é imortal e que Deus não só existe, mas é a única Verdade, a única Rota, a única Vida. Os amotinados deverão remar contra a maré e contra o vento com todas as suas forças, pois a banalidade vicia, degrada, cega, paralisa, acomoda, ilude, escraviza. O difícil será encontrar quem se amotine, quem tenha coragem de comandar o levante, pois ele deverá ser, sobretudo, um homem livre. E o pobre homem banalizado de hoje é tudo, menos livre.

fonte: www.comunidadeshalom.com.br

Maria Emir Nogueira, é co-fundadora e acessora de formação da Comunidade Católica Shalom.