
Outro dia deparei-me com uma frase de Sören Kierkegaard, dita em 1845 e que me pareceu triste profecia à banalização do humano que estamos vivendo hoje:
“[A sociedade de hoje] é um navio que está nas mãos do cozinheiro de bordo; e as palavras transmitidas pelo auto-falante do comandante não dizem mais respeito à rota (que não mais interessa a ninguém), mas ao que se comerá amanhã”.
Acerca desta afirmativa, comenta a Academia Pontifícia: “Já em 1845, Sören Kierkegaard (1813 – 1855), como uma antena extraordinariamente sensível, captou um comportamento difuso de banalização da vida com todas as conseqüências que isso comporta para a orientação da liberdade humana. (...) Kierkegaard percebeu que se estava difundindo a idolatria do banal”.
Passaram-se 162 anos, e eis que nós, homens do século XXI, continuamos alienadamente prisioneiros, na nossa nau, nem um pouco interessados em nosso destino, a fartar-nos avidamente do cardápio do aqui e agora.
O centro da frase de Kierkegaard, porém, não é o navio, mas a banalização do homem que advém de uma contínua inversão de valores. Durante milênios a civilização foi guiada pelos valores cristãos. A fé, o temor e respeito a Deus, os princípios do Evangelho, da caridade, da bondade, do respeito pelo outro, da vida em família e, sobretudo, o sentido de eternidade, o destino dos passageiros do navio.
Tão perplexo quanto Kierkegaard, Fedor M. Dostoievski (1821-1881), diria, diante do mundo enlouquecido e medíocre que ambos previram: “Se Deus não existe, então tudo é possível!” O homem, cheio de si, auto-suficiente a ponto de se julgar senhor da vida e da morte, decretou, na vida prática, a inutilidade de Deus. Da morte de Deus, decretada por Nietzsche pouco depois de Kierkegaard e Dostoievski, passamos, no século XXI, ao ateísmo prático que nos permite até “saber” que Deus existe, mas ignorar este fato como se não tivesse nenhuma importância para nossa vida.
O que importa, hoje, é tirar Deus do comando do navio e preservar para si e para os outros o ar moderno e emancipado que garante prestígio nas mais diversas áreas da sociedade. Em seu lugar, é preciso colocar o cozinheiro de bordo, ou seja, aquele que garante a banalidade do dia a dia, o prazer imediato acima de tudo e de todos, a animalidade do homem.
Se o homem vive para comer, fazer sexo, ter satisfeitos seus devaneios, pensar principalmente em si, buscar a riqueza e o poder, realmente torna-se cada vez mais próximo do animal, prisioneiro do prazer do aqui e agora, pronto para achar que sua vida acabará no instante de sua morte, despido de ideais que ultrapassem a última conquista científica, um aumento da renda própria ou o artefato técnico de última geração . Desprovido, em uma palavra, de algo, de Alguém que o ultrapasse.
Talvez Dostoievski exclamasse, hoje: “Se o homem torna-se um fim em si mesmo, se não crê em nada ou ninguém que esteja acima dele, então tudo é possível”. Kierkegaard talvez completasse: “Se a rota não importa a ninguém, se o comandante está imobilizado, todos naufragarão iludidos, de barriga cheia”. Não foi o que aconteceu com o auto-suficiente e imbatível Titanic?
O homem banalizou-se. Vive para si. Para comer, dormir, ganhar dinheiro e fama. O relativismo moral corroeu sua consciência, o individualismo egoísta o cegou. O egoísmo o paralisou. O materialismo o degradou. O ateísmo prático invadiu a vida dos próprios cristãos e os descristianizou.
A banalidade invade a mídia, a música popular, a literatura dos milhões de exemplares instantâneos. Expressa-se nas drogas e no álcool, nas famílias desfeitas, nos milhões de abortos diários, na droga cibernética que tem consumido tantas mentes brilhantes, no trabalho como sentido de vida.


Se Deus não existe, tudo é possível. Se é o cozinheiro quem está no comando, estão banalizados os comandados. É preciso fazer um motim. Sim, um levante! É preciso retomar o navio, redirecionar seu rumo, reafirmar que o homem é imortal e que Deus não só existe, mas é a única Verdade, a única Rota, a única Vida. Os amotinados deverão remar contra a maré e contra o vento com todas as suas forças, pois a banalidade vicia, degrada, cega, paralisa, acomoda, ilude, escraviza. O difícil será encontrar quem se amotine, quem tenha coragem de comandar o levante, pois ele deverá ser, sobretudo, um homem livre. E o pobre homem banalizado de hoje é tudo, menos livre.
fonte: www.comunidadeshalom.com.br
Maria Emir Nogueira, é co-fundadora e acessora de formação da Comunidade Católica Shalom.
fonte: www.comunidadeshalom.com.br
Maria Emir Nogueira, é co-fundadora e acessora de formação da Comunidade Católica Shalom.
Um comentário:
Esse texto é uma verdade. realmente o mundo tá vivendo isso.
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